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quinta-feira, outubro 09, 2003

62. António Guerreiro, no Suplemento Actual (acesso pago) do Jornal Expresso apresenta em "A reportagem universal", uma critica ao universo dos blogues, discurso em grande parte construído no rebater das teses da influência positiva que o aumento da expressão individual significa para a criação de uma maior massa crítica no tecido social. "Tentaremos, sempre que isso se justificar, abrir a antena para a nossa blogosfera, ou blogolândia" para o debate ou confronto de opiniões com as ideias deste artigo de opinião. Começamos desde já por registar a interacção discursiva existente entre este e o metablogue anterior, "Ciúme".

"A reportagem universal

O novo fenómeno da comunicação chamado blog é um bom observatório das características do nosso espaço público e da hegemonia do discurso da opinião.
Subitamente, levantou-se uma euforia no mundo da publicidade - do espaço público - não propriamente por causa dos factos que produzem notícias, mas por causa das notícias que são culpadas dos factos, como diria Karl Kraus, cuja actualidade é cada vez mais notória. A jubilosa catástrofe - quotidiana, como são as verdadeiras catástrofes - chama-se blog. Não é um fenómeno completamente novo, mas, entre nós, surgiu há pouco tempo organizado segundo regras próprias, reivindicando uma certa autonomia, e já se tornou um respeitável objecto de estudo.
Não se pode, obviamente, caracterizar os blogs em geral porque, tratando-se de um meio que dispõe de uma enorme liberdade, há-os de todos os géneros e sobre as mais variadas matérias: os que reivindicam o mero direito à expressão, os de agitação política, os paródicos, os pornográficos, os literários, os que servem um saber, um gosto, uma causa, uma obsessão. Potencialmente, nenhum território lhes é interdito porque não há limites para o seu poder de penetração. Os limites são os do próprio meio, eficaz nas mensagens curtas e no registo do imediato, mas inadequado a tudo o que requer outro ritmo e outra temporalidade. Temos, assim, mais um factor - ecológico - que intervém na obliteração de cronologias lentas, sejam elas culturais ou políticas.
O facto curioso, em Portugal, é que o interesse pelos blogs não foi suscitado, em primeiro lugar, por terem acedido à livre publicação indivíduos e grupos que dela estavam excluídos, mas por terem entrado na «blogosfera» (numa posição de domínio, pois aqui também se criaram hierarquias) nomes que, regularmente ou de maneira esporádica, escrevem nos jornais ou são convidados pelas televisões. Este é um sinal eloquente de que há hoje uma corrida ao espaço público mediático (sintoma de uma perda da efectualidade da cultura e das instituições do saber) e de que este não é capaz de se estruturar de outra maneira que não seja segundo o regime do mandarinato. É este regime o responsável pela hipertrofia da «opinião» que caracteriza a imprensa, em Portugal, e que a grande maioria dos blogs prolonga na perfeição. Os blogs mais frequentados, isto é, aqueles para onde estamos constantemente a ser remetidos através dos «links», quando entramos na «blogosfera», apresentam-se, assim, como uma esfera funcional das páginas de opinião dos jornais, mesmo quando têm um registo diarístico e pessoal. Digamos que os blogs economizaram algumas etapas e chegaram rapidamente ao ponto a que já chegaram ou aspiram chegar os jornais: o da conversa desenvolta, cujos intervenientes são muito mais actores do que autores, ao serviço do espectáculo integral. Tão próximos estão - jornais e blogs - do mesmo universo cultural e funcional que não é possível fazer a crítica de uns sem fazer a crítica de outros. O que alimenta a maior parte dos blogs não é uma escrita mas uma conversa, como aquela que se pode ter no café com os amigos, e que se esgota numa troca que promove a confusão da esfera pública com a esfera privada.
Bastante representativo é um dos blogs mais citados e considerado geralmente como um modelo: o «Abrupto» (www.abrupto.blogspot.com), de José Pacheco Pereira. As posições críticas de J.P.P. em relação aos jornais são bem conhecidas. No entanto, ele esbarra geralmente no facto de o seu estatuto e prestígio se alimentarem exactamente do sistema mediático que critica - um sistema que vive da lógica do vedetismo, da omnipresença e da usurpação. Aquilo que Pacheco Pereira representa no território dominante dos clérigos da opinião é uma criação específica do nosso espaço público, não poderia existir senão em Portugal. À primeira vista, o seu blog parece uma tentativa de «desjornalizar» a sua escrita e de entrar no campo mais afável do discurso cultural e do apontamento pessoal. Mas há algo de mais jornalístico, nos nossos dias, do que estas deambulações sócio-político-culturais, em formato magazinesco, servidas por um político? Não há. E eis, então, Pacheco Pereira convidado a montar o seu espectáculo dentro do programa de variedades que é o «Jornal da Noite», da SIC (como, aliás, todos os outros jornais televisivos), ao mesmo tempo que Marcelo Rebelo de Sousa, o Professor, no canal ao lado, aconselha os quatorze livros que leu durante a semana.
O discurso inócuo do «fait-divers» político-cultural e da conversa de família ou de amigos domina, de modo geral, os blogs. Evidentemente, não se trata de algo que seja estranho aos jornais. Mas a questão é esta: porque é que professores universitários, poetas, escritores, críticos desejam tanto jornalizar-se (no duplo sentido do discurso jornalístico e do discurso diarístico) através da «bavardage», do exibicionismo, da falsa subjectividade opinativa? A excepção a este regime são aqueles blogs que tentam fazer um uso produtivo da especificidade do meio, com a consciência do risco e da experimentação que isso implica, excluindo-se da relação funcional com o mero discurso diarístico e a conversa opinativa. Um exemplo: «Reflexos de Azul Eléctrico» (www.reflexosdeazulelectrico.blogspot.com), da responsabilidade de José Bragança de Miranda.
Não é preciso ter lido Habermas para perceber que a expressão individual e o direito à opinião que alimentam a maior parte dos blogs têm um grande valor decorativo mas não têm nada que ver com uma esfera pública crítica (que, de resto, tem cada vez menos condições, em Portugal, para se constituir). Por isso é que é falaciosa a afirmação de Pacheco Pereira, no seu blog: «O mundo continua lá fora e quanto mais vozes se ouvirem melhor. Eu sou um liberal, acredito na lei dos grandes números, na ‘mão invisível’. Há virtudes na cacofonia, cada voz a menos empobrece.» Esta teoria democrática da expressão individual (que só por equívoco podemos pensar que é de inspiração iluminista) é duplamente falaciosa: 1) porque esquece deliberadamente que o sistema é hipertélico, isto é, vai para além dos seus próprios fins e anula-se na sua finalidade; 2) porque se baseia no princípio imposto pelos «mass media» de que tudo o que eles fazem aparecer é bom e não resta outra tarefa senão a de jornalizar o discurso na cacofonia generalizada. Esquecida fica a responsabilidade de interromper a conversa. Esta lei da submissão ao ruído público - e da dependência visceral que ele cria - não é senão a lógica dos «grandes redutores», dos que não conseguem pensar fora da lógica do jornalismo e da agitação política e cultural."




AUTOR: António Guerreiro
LOCAL: Suplemento Actual, Jornal Expresso
DATA : 4 de Outubro de 2003


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